Caipiras chutadores-de-bosta

RESUMO: O autor compartilha sua experiência como estudante na UFMT em Cuiabá e discute a crescente ênfase dada ao empreendedorismo na universidade. Ele observa que, apesar de reconhecer a importância da preparação para o mercado de trabalho, acredita que a inserção do empreendedorismo como disciplina é um equívoco. O autor também reflete sobre a influência do agronegócio em Mato Grosso e critica a busca pelo lucro como principal objetivo, argumentando que é necessário compartilhar e não apenas commoditizar para alcançar riqueza verdadeira.

Eu vivo na capital do Mato Grosso, Cuiabá, a bem uns dez anos. Vim para fazer faculdade e, pasme, é só isso que tenho feito desde então. Estudo geografia na UFMT atualmente, mas se eu te falar que estudo mais em casa sozinho, e muito mais do que geografia, é por que esse foi o rumo que as coisas tomaram. Eu adoro a UFMT, não me entenda mal, e tenho amigos e colegas de trabalho lá; sim, sou um dos cabras-marcados-para-morrer que o governo adoraria tirar a bolsa; não, não é o caso de falarmos disso. Mas, sim, claro, por que não, da UFMT.

A UFMT, campus Cuiabá, é um lugar com valor afetivo para mim pelas mais diversas razões, e se eu acreditasse em fantasmas, pode acreditar, era lá que eu ia assombrar, como uma rugosidade insistente nos corredores e salas, como um novo lote de maconha que todos querem fumar nos emufs, como um novo tipo de autor que todo mundo está comentando. Não por opção minha mas somente por que é isso que minha vida adulta tem sido, e cada vez mais. Viver em Cuiabá tem muitos aspectos mas a UFMT resume todos eles para mim. Mesmo sendo uma unidade federal, e, talvez, por isso mesmo. Afinal, somos todos brasileiros. eu na UFMT, no IL

Porém, sinais dos tempos, algumas mudanças no pensamento acadêmico tem dados as caras. Estou falando da bola da vez, o empreendedorismo. E se essa questão parece local, e sem importância, bem, eu também pensava isso, mas como já disse, minha vida passa em grande medida sendo influenciada por aquele lugar, então é natural que eu me estenda no assunto.

A coisa aconteceu para mim quando promoveram o TED na UFMT, há dois meses e meio. O evento, que pega o modelo americano e adapta para realidades locais, e que por isso ganha um x no nome, TEDx, tem sido aplicado com sucesso em muitos lugares no mundo, e eu, como um fã do programa de palestras (facilmente encontradas no youtube) não pude deixar de acompanhar o TEDx cuiabano. Assisti a versão stream aqui de casa e estou assistindo outras vez a partir do youtube. As palestras são todas interessantes, mas não dá para negar que quase todas elas giram em torno de um tema, explícito pelos organizadores, aliás, que é o empreendedorismo.

neo-soja

A universidade é o um trampolim para a vida adulta e, consequentemente, para o mundo do trabalho, isto é inegável. Por isso mesmo já temos os programas de pesquisa onde somos levados a aprender a trabalhar e estudar em conjunto, além de outros incentivos como a apresentação de trabalhos e competições nacionais. Agora estão sugerindo inserir uma disciplina de empreendedorismo, que seria mais uma oportunidade de inserção no mercado do estudante. Pessoalmente eu acho que é um tiro no pé.

Voltando ao início: viver em Cuiabá é viver em Mato Grosso. Ponto. Estamos falando de um estado gigantesco com as maiores fazendas do planeta (não tenho dados para essa afirmação mas não é algo assim tão difícil de deduzir, certo?). Aqui respira-se soja, come-se soja, constrói-se com soja. Se o Neo houvesse re-nascido em Cuiabá ele não ia ver linhas de código mas linhas de soja. Não estou exagerando: esse computador que escrevo e essa mesa que uso são feitas de soja. Não parecem. Não tem a forma, nem a cor, nem a substância, mas elas nunca estariam aqui se não fosse a soja. Vem aí: Matrix Re-boi

Mas Cuiabá é diferente. Uma cidade conhecida pelo seu calor infernal e por ter exportado o Otaviano Costa, aqui não se encontram agroboys em cada esquina. Aqui o rodeio não tem a força que tem em outros lugares. Cuiabá está mais para Goiânia que para Barretos. Ainda assim, é para cá que o dinheiro do agronegócio tem que escoar . Ou teria. Quando se tratam de commodities, ou mercadorias, estamos falando de receber em dólar, estamos falando de transformação do capital: não vemos a soja, mas a soja está em todo lugar. Da mesma maneira, não vemos a miséria, mas ela está, sim, em todo lugar.

Indo direto ao ponto: não acredito que a ciência seja isenta de tomar partido e fazer escolhas, assim como não acredito que criar uma disciplina de empreendedorismo vá criar empreendedores. É óbvio que os incentivos vão para a área que dá dinheiro, e serão considerados empreendedores em potencial quem oferecer lucros em potencial. Não, obrigado, eu declino. O capital já conseguiu perverter muito sem termos dado tanto incentivo, além disso, colar penas no rabo não te faz uma galinha e estudar administração não te faz o Barão de Mauá. To falando sério quando digo: suplantar a busca do conhecimento começa com a intriga da necessidade, a criação de ecossistemas de aniquilação do oponente; a busca do lucro. Ao contrário do que dizem não se deixe enganar, o empreendedorismo é só mais uma metamorfose do capitalismo, talvez sua melhor, talvez sua última. Quer saber se é bom ser seu próprio patrão? converse com um motorista da Uber.

Claro, ninguém aqui quer voltar a andar a pé. Mas sabemos que na mão do mercado somos menos que nada, números manipulados por algoritmos. Ninguém quer virar um caipira chutador de bosta em um cenário rural, mas para sermos verdadeiramente ricos precisamos aprender a compartilhar, não a comoditizar. Hoje somos um dos poucos países com capacidade de parar o mercado internacional de mercadorias básicas (e temos os únicos caminhoneiros loucos o suficiente para fazer isso), então por que não sentimos isso como vantagem? Se existe uma disciplina que precisam nos ensinar na universidade é a usar o sistema contra o próprio sistema, trazendo de volta para as pessoas aquilo que elas sacrificaram tanto para ter: educação, saúde, segurança. Não só, isso, claro, mas isso pelo menos. Mas, claro, ninguém vai te ensinar aquilo que você precisa saber para sair do julgo dos ricos e poderosos.

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